Freqüentemente recebo e-mails de colegas do Brasil, psicólogos ou estudantes de psicologia que desejam vir à Inglaterra estudar, adquirir experiência ou mesmo emigrar para a terra da Rainha. As dúvidas geralmente são em relação à possibilidade de se exercer a profissão de psicólogo no Reino Unido, e como proceder caso isso seja possível.
A questão é bem complexa, e como quase tudo na vida, não existe um só caminho. Por isso resolvi escrever este post, para elucidar quanto ao trabalho do psicólogo brasileiro na Inglaterra, tomando como base a minha jornada e experiência até então, na esperança de ajudar aos colegas que desejam embarcar nesta aventura.
Todavia é preciso primeiramente mencionar dois pré-requisitos básicos: o domínio da língua inglesa e o direito legal de se residir no Reino Unido (seja por visto ou cidadania européia). Não vou me adentrar nessas questões, mas já adianto que sem uma ou outra, as possibilidades são quase que inexistentes. Também não vou explorar questões e desafios relacionados à experiência do imigrante, pois acho importante cada um encontrar o seu caminho. A descoberta faz parte da jornada.
Bom, então vamos lá.
Eu me formei psicólogo no Brasil em 2006, e vim para Londres em 2007. Ao se aproximar do término dos meus estudos no Brasil, percebi que era apaixonado pela clínica psicanalítica, e então decidi que queria em algum momento embarcar na formação de psicanalista na Sociedade Britânica. Eu sabia que Londres era uma das referências mundiais em termos de psicanálise (além de ser uma das cidades mais fantásticas de se viver), e por isso resolvi vir para cá.
No entanto, logo percebi que, além de muitas outras coisas, a formação e o exercício da profissão de psicólogo na Inglaterra é muito diferente do Brasil. Por exemplo, existe uma distinção fundamental entre psicólogo e psicoterapeuta, tanto na formação quanto na atuação. Isso me confundiu demais, porque de início eu não sabia se eu era psicólogo ou psicoterapeuta de acordo com a concepção local. Vou tentar explicar.
Na Inglaterra (e no Brasil também) o psicólogo atua em vários campos: educacional, forense, saúde, ocupacional, pesquisa, clínica e aconselhamento. Até aí tudo bem. Porém, o que se entende por ‘Psicologia Clínica’ no Brasil é totalmente distinto do conceito de psicólogo clínico daqui. Na Inglaterra, o psicólogo clínico trabalha geralmente com avaliações e prescrição de tratamento breve e focado, do tipo cognitivo-comportamental (CBT). A formação, atuação e registro profissional (tipo CRP) são totalmente distintos. Então se antes quando ouvia sobre psicologia clínica eu pensava em um consultório com duas poltronas, um divã, uma estante de livros e uma foto do Freud na parede, aqui aprendi que a psicologia clínica é algo muito mais científico (no sentido clássico da palavra), planejado e focado. Percebi então que eu não era psicólogo, e muito menos clínico.
Aos poucos fui aprendendo que o que eu tanto gostava de estudar e exercer no Brasil aqui era chamado de psicoterapia, esta também distinta na formação, registro profissional e atuação. Apesar de se haver vários tipos de formações e abordagens, na Inglaterra a psicoterapia geralmente é de cunho psicodinâmico, e tradicionalmente mais aberta, longa e abrangente. Então por considerar minha formação no Brasil muito mais voltada à psicoterapia do que à psicologia, me esforcei para buscar experiência e ser credenciado e reconhecido como psicoterapeuta pelos órgãos aqui da Inglaterra.
Aí entra uma outra questão, que é o registro com uma organização profissional no Reino Unido. Aqui é diferente do Brasil, que tem o CRP como órgão único que regula as atividades do psicólogo, não sendo possível se trabalhar sem registro. Aqui não tem uma só organização que regulamenta a profissão, existem várias. As principais são:
BPS (British Psychological Society): é o órgão que regulamente a profissão de psicólogo. Consegui me registrar como membro graduado desta organização, o que significa que eles reconheceram minha formação no Brasil como equivalente ao curso de graduação daqui. Eu não poderia atuar somente como membro graduado, então tal registro só seria vantagem se eu quisesse prosseguir para o doutorado (5 anos), para assim poder me credenciar e atuar como psicólogo. Mas como já estabelecemos há alguns parágrafos atrás, eu não sou psicólogo nos termos daqui, e me contentei em ser somente um membro graduado.
UKCP (United Kingdom Council for Psychotherapy): a UKCP é um dos grandes órgãos que regulamenta a psicoterapia no Reino Unido. Porém, só é possível se registrar quando se faz um curso de formação credenciado por eles. E como eu queria que a minha formação do Brasil fosse reconhecida, isso seria impossível, pois não há um caminho de credenciamento individual. Eu não fui atrás da possibilidade de fazer um curso de adaptação ou revalidação, então não sei se tais existem.
BACP (British Association for Counselling and Psychotherapy): outro dos principais órgãos profissionais na Inglaterra. Foi com a BACP que consegui me registrar e me credenciar. Por um milagre reconheceram a minha formação no Brasil. Mas ainda bem que milagres acontecem! O processo foi bem lento e complexo. Foi preciso que eu primeiro me registrasse como membro, o que foi mais simples. Só com a formação do Brasil já foi possível (o equivalente de se ter feito uma formação aqui). Porém não se é possível atuar somente com o registro. Então depois de se tornar membro, a pessoa precisa adquirir experiência suficiente para se credenciar, e só depois de credenciado poderá atuar na área. Em 2010, quando fiz meu credenciamento, o requisito era no mínimo 3 anos de experiência pós-qualificação, com cerca de 150 horas de atendimento supervisionado. No formulário do credenciamento é preciso comprovar a equivalência do curso do Brasil, o que fiz através das ementas das disciplinas cursadas. Também tive de submeter um estudo de caso, uma explicação teórica da minha abordagem psicoterapêutica (nesse caso a psicanálise), um ensaio sobre ética, além de outros pontos específicos. Complexo, mas não impossível.
BPC (British Psychoanalytic Council): a BPC é o órgão que registra os que fizeram formação psicanalítica ou um curso de formação em psicoterapia psicanalítica (formações muito semelhantes por sinal). Também só se é possível registrar mediante a conclusão de um curso credenciado. Sou registrado junto à BPC numa modalidade de terapia breve para depressão (Dynamic Interpersonal Therapy), um curso de treinamento que fiz aqui. Porém esse foi um curso complementar, possibilitado por já ser eu credenciado como psicoterapeuta no Reino Unido.
Ainda com relação ao registro e credenciamento profissional, preciso ressaltar que no Reino Unido demanda-se esforço não somente para obtê-lo, mas também para mantê-lo ano a ano. No Brasil o psicólogo em formação pode se registrar no CRP assim que concluir seu curso e colar grau, estando assim já apto para atuar na profissão (mesmo que com experiência mínima). E contanto que pague as anuidades (e não sofra processo ético), pode continuar trabalhando como psicólogo indefinidamente. No Reino Unido a história é outra. Como já mencionei, para se registrar e credenciar o profissional deve comprovar que tem as condições (formação, experiência, compromisso, etc) mínimas necessárias para trabalhar, de acordo com as exigências de cada orgão. Mas além disso, a cada ano o profissional registrado e credenciado deve comprovar que teve no mínimo 1 hora de supervisão por semana, e que participou de no mínimo 30 horas de cursos de aperfeiçoamento e atividades para o desenvolvimento profissional. Ou seja, o psicólogo ou psicoterapeuta no Reino Unido deve manter-se atualizado e sempre buscando o desenvolvimento.
Como o leitor pode notar, o caminho que eu adotei até chegar a estar em posição de trabalhar como psicoterapeuta aqui em Londres foi lento e complexo, mas de suma importância. Entre 2008 e 2010 fiz um mestrado em estudos psicanalíticos na clinica Tavistock. Foi um mestrado acadêmico, mas que me ajudou a ir inteirando-me do contexto daqui. Juntamente fiz alguns cursos no instituto de psicanálise da Sociedade Britânica, onde desejo ingressar na formação. Um destes cursos era mais clínico, então busquei um estágio não remunerado num departamento de psicoterapia do sistema de saúde publica, aqui em Londres. Ao juntar mais experiência e horas clínicas, em 2010 consegui me credenciar na BACP como já havia mencionado, mas ainda continuei meu trabalho voluntário. Lá aprendi como o sistema funciona, como as pessoas daqui enxergam a psicoterapia e a psicanálise, aprendi a fazer consultas iniciais, aperfeiçoei a técnica, tive supervisão, etc. Digo que foi neste departamento que aprendi a arte da psicoterapia. Trabalhei lá até o final de 2012.
Em 2011 decidi me aventurar e montei minha clínica particular, onde tenho trabalhado em tempo integral. Atendo adultos em psicoterapia psicanalítica, na sua maioria ingleses, brasileiros, portugueses e também alguns de fala espanhola.
Bom, percebe-se então que não é impossível de se vir pra cá com a formação do Brasil e conseguir trabalhar como psicólogo na Inglaterra. É complexo, lento, mas não impossível. Existem também questões individuais, e de certa forma aqui cada um acaba construindo seu caminho.
Ainda não iniciei a sonhada formação psicanalítica a qual me motivou a vir para Londres, mas estou em vias de me candidatar num futuro próximo. Essa é uma outra jornada, que merece uma outra dissertação.
Espero que este longo texto ajude os colegas que sonham em um dia vir à terra do chá com leite (que eu adoro), e que a descoberta lhes enriqueça, assim como ainda tem me enriquecido.
Caso ainda tenha alguma dúvida, fico à disposição. É só comentar ali embaixo.
Allan Gois – Psychotherapist London – Psychotherapist Bloomsbury – Psicoterapia en Espanol Londres