Uma das coisas que mais me intriga na vida é a capacidade que cada um de nós tem de se auto-sabotar. De uma maneira ou de outra cada um de nós já fez algo que seria maléfico para nós mesmos, desde pequenas transgressões como comer aquele pedaço de chocolate proibido que iria arruinar a dieta, até coisas mais destrutivas e complexas, como por exemplo se envolver em um relacionamento que certamente nos faria mal. Isso sem mencionar coisas mais extremas em termos de destrutividade, como auto-flagelo, comportamentos arriscados ou mesmo vícios.
Talvez a auto-sabotagem tenha sido uma das grandes razões que me fez querer estudar a mente humana, na medida em que quis entender a habilidade que temos de por vezes minar nossa busca por uma vida boa suficiente. Como psicoterapeuta eu vejo o quão difícil é quando meus pacientes percebem este aspecto agressivo de si próprios, quando entram em contato com a destrutividade que se manifesta nos padrões de auto-sabotagem. Esta percepção dolorosa geralmente vem acompanhada de um sentimento de confusão, angústia e impotência.
Mas por que fazemos isso com nós mesmos? Por que de tempos em tempos escolhemos o que nos faz mal, decidindo por algo que vai arruinar aspectos das nossas vidas que tanto lutamos para cultivar e desenvolver? Por que muitas vezes nos prendemos em ciclos que não são saudáveis, seja em relacionamentos, comportamentos ou em como nos sentimos? Logicamente não faz sentido buscarmos algo que nos vai trazer ainda mais sofrimento e angústia. Mas ainda assim o fazemos. Então por que?
Bom, a primeira coisa a se considerar se refere a um conflito que existe dentro de nós, uma batalha entre o esforço natural de se desenvolver, crescer e sobreviver, que bate de frente com uma força oposta que vem para atacar e destruir este ímpeto. Freud descreveu este conflito ao propor que cada um de nós é governado por duas pulsões (ou instintos) opostos: pulsão de vida, que contém os instintos que promovem o desenvolvimento e o crescimento (ex: instinto sexual, criatividade, instinto de sobrevivência); e pulsão de morte, a força oposta que busca a destruição (de si próprio ou de outros), a quebra do desenvolvimento e um retorno à morte, a um estado inorgânico. Freud descreveu o conceito de pulsão de morte ao observar questões como o masoquismo, e também algo que ele denominou como ‘compulsão à repetição’, um movimento inconsciente que leva a pessoa a se colocar repetidamente em situações dolorosas, como réplicas de experiências passadas. Não tão distinto da auto-sabotagem então.
Se nós prestarmos atenção nesta dualidade entre a pulsão de vida e pulsão de morte, perceberemos que este conflito permeia a maneira como nos sentimos, nos comportamos e nos relacionamos uns com os outros, e isto pode nos ajudar a entender como a auto-sabotagem funciona.
No meu trabalho como psicoterapeuta em Londres eu tenho contato frequente com as variadas maneiras pelas quais a auto-sabotagem se expressa na vida dos meus pacientes. Estas manifestações são majoritariamente inconscientes, e é parte da análise ajudar o paciente a se tornar consciente e assim elaborar as ramificações da destrutividade que cada um de nós carrega.
Eu vou elencar agora alguns exemplos de como a auto-sabotagem se manifesta, e tentar relacionar seus respectivos significados e funções inconscientes
⁃ Fidelidade Neurótica: algumas pessoas consideram seu pai ou sua mãe (ou outro ente próximo) como um fracasso na vida, e os tem como impotentes, fracos, frágeis. Assim, esta pessoa pode inconscientemente jurar um tipo de ‘fidelidade neurótica’ a este pai ou mãe falho, e assim se sabotam para garantir que nunca serão superiores a eles. Sendo assim, crescer, se desenvolver e se tornar melhor se constituiria como uma traição, o que resultaria em um sentimento de culpa insuportável, à espera de um castigo. Neste sentido, estar bem é uma afronta à proibição interna de superar os pais, que é reforçada por uma parte destrutiva e cruel da mente. Todavia, não se resumindo a isto, algumas pessoas acreditam que se elas se desvincularem destes pais derrotados com quem elas se identificam, ou seja, se tentarem desenvolver uma vida separada, própria e independente destes pais, elas estariam de fato matando-os ou contribuindo para sua destruição (ex: que o ente próximo de suicidaria, ou beberiam até morrer, etc). E assim uma vida de auto-sabotagem se estabelece, para previnir a destruição da pessoa caso a pessoa quebre esta aliança neurótica.
⁃ Punição: a auto-sabotagem pode ser também uma forma de punição, de castigo. Mas punição pelo quê? Pelo crime de ter desejos, sentimentos, pensamentos e fantasias proibidas (e destrutivas), que devem ser banidos da consciência para assim aliviar a pessoa de ter de suportar aspectos destrutivos de si mesma, aspectos estes que são frequentemente voltados aos entes mais próximos. Todos nós temos na nossa mente uma parte de nós mesmos que age como um tribunal interno, que faz com que nos sintamos culpados se fizermos (ou pensarmos, ou sentirmos) algo que vai de encontro a uma espécie de lei interna. Freud chama esta instância de Superego, uma versão internalizada dos nossos pais (e da sociedade) que nos supervisiona e pode nos castigar caso façamos algo proibido. A auto-sabotagem então pode se constituir como um castigo deste superego, que pune a pessoa por ser culpada de algo internamente errado que cometeu (que nem sempre corresponde à moral externa).
⁃ Onipotência: algumas pessoas se sabotam para se proteger de um medo inconsciente de se tornarem (em fantasia) potentes demais, o que inconscientemente poderia desencadear aspectos destrutivos (ex: sentimentos de inveja, ódio ou cobiça). Por isso algumas pessoas permanecem impotentes e desmoronadas por medo de machucar ou danificar os entes mais próximos. A auto-sabotagem funciona então como um sistema de segurança interno com a função de proteção.
⁃ Refúgio: alguns padrões de auto-sabotagem funcionam como um refúgio contra sentimentos angustiantes que podem emergir de relacionamentos. O padrão serve como uma maneira de nunca ter de sair de uma ‘zona de conforto’ inconsciente, onde as falhas são conhecidas e familiares. Ou seja, é uma proteção contra se expor aos perigos dos relacionamentos de verdade, onde sentimentos de perda, frustração e angústia são sempre possíveis. Auto-sabotagem é então dos males o menor.
⁃ Controle: Freud entende a compulsão à repetição como uma tentativa de se dominar situações dolorosas do passado, um esforço para se ter controle de circunstâncias ou experiências angustiantes e traumáticas. A auto-sabotagem neste sentido se manifestaria como um esforço de se dominar a dor e o sofrimento, talvez semelhante à auto-flagelação. É portanto uma derrota manejável, talvez como quando a pessoa termina um relacionamento por antecipação, ou quando trai o outro antes de que seja traído.
⁃ Proteção: por mais destrutiva que a auto-sabotagem seja, às vezes se sabotar tem a função de poupar os nossos entes próximos de impulsos destrutivos. Esta destrutividade é então voltada para dentro, para a própria pessoa, protegendo então o outro de ser machucado. Este é geralmente o caso da depressão, já que o ódio e hostilidade são vertidos contra si próprio ao invés de voltados para o outro. Em casos extremos de dinâmicas auto-destrutivas, coisas como auto-flagelação (ex: se cortar, se mutilar) ou até mesmo com o suicídio, surge uma pergunta pertinente: ao atacar a si próprio, quem na verdade a pessoa deseja (mas se sente incapaz de, ainda que inconscientemente) machucar? Neste sentido, ao se auto-sabotar, quem estaria sendo poupado?
⁃ Medo de se desintegrar: para algumas pessoas, uma estrutura mental frágil é tudo o que têm. Mesmo que estejam sofrendo na vida, algumas pessoas fazem de tudo para resistir qualquer mudança que venha ameaçar a maneira que se organizaram (que certamente os ajudou a sobreviver até este momento), não importa o quão disfuncional ou frágil seja tal estrutura. A auto-sabotagem neste sentido se torna então como um mecanismo de defesa, parando tudo que venha perturbar ou transtornar este sistema. É também uma tentativa de se retornar a um ‘equilíbrio’ prévio, por medo de um desmoronamento ou desintegração ainda maior.
⁃ Masoquismo: o termo ‘masoquismo’ aponta para a dinâmica de se obter satisfação no sofrimento. A auto-sabotagem seria então o ato de se obter um prazer perverso através de atacar a si próprio, or de colocar a si próprio em situações que causarão dor a angustia.
Apesar das devidas nuances, todos os significados e funções mencionadas acima, observadas no contexto do meu trabalho como psicoterapeuta e através das minhas leituras, apontam na direção de dois fatos: auto-sabotagem é destrutiva, mas também defensiva. Todavia, até que a pessoa se dê conta do custo que os padrões de auto-sabotagem acarretam, e busque ajuda para mudar, a tendência é que a auto-sabotagem se perpetue na vida da pessoa.
Neste sentido, a psicoterapia pode ajudar a pessoa a entrar em contato com os aspectos mais destrutivos de si mesma, para que sejam então entendidas e elaboradas. A psicoterapia provê um espaço para que a destrutividade seja vivenciada, contida e transformada no relacionamento paciente-terapeuta. Padrões de auto-sabotagem podem então ser manifestados no contexto da terapia, para que sejam desemaranhados e reorganizados na maneira como o paciente se relaciona, se comporta e se sente. A psicoterapia pode ajudar a balancear a dualidade entre pulsão de vida e pulsão de morte, atenuando o ímpeto destrutivo na medida em que se manifesta do trabalho terapêutico.